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quinta-feira, 6 de agosto de 2009

O Modelo Biomédico

O modelo biomédico ou mecanicista, hoje predominante, tem suas raízes históricas vinculadas ao contexto do Renascimento e de toda a revolução artístico-cultural que ocorre nessa época, associada, igualmente, ao projeto expansionista das duas metrópoles de então - Portugal e Espanha - cuja consecução vai demandar o surgimento de instrumentos técnicos que viabilizem as grandes navegações (astrolábio, bússolas, caravelas, avanços na cartografia, etc), na tentativa, como se sabe, entre os fatores que prioritariamente estimularam o mencionado empreendimento, de reatar o intercâmbio comercial com as Indias, coarctado a partir da tomada de Constantinopla pelos turcos, em 1453. Como precursores significativos das mudanças radicais de ordem técnico-científica ocorridas a partir do século XV hão de ser citadas as contribuições dos astrônomos, particularmente Copérnico e Galileu e, mais adiante, Kepler. A teoria geocéntrica ptolomaica, até então hegemônica e inquestionável, é substituida pela heliocéntrica, a despeito da força dos dogmas católicos proclamados como única forma aceitável de visualizar o universo e todo e qualquer fenômeno, ficando sob risco de enquadramento nos rigores da inquisição aqueles que deles discordassem (e a história dos tribunais da inquiçao evidenciam quão longe se chegou nesse propósito de reprimir os chamados anatemas e hereges que abraçavam idéias nao ortodoxas). O filósofo e matemático René Descartes (1596-1650) é o responsável por um método e uma escola filosófica pioneira na habilitação privilegiada do sujeito que conhece (rescogitans) frente ao objeto ou realidade externa a ele e que vai ser conhecida (res extensa). No seu Discurso do Método Descartes fórmula as regras que se constituem os fundamentos de seu novo enfoque sobre o conhecimento e que persistem hegemônicos no raciocínio médico ainda hoje. A primeira regra preceitua que nao se deve aceitar como verdade nada que não possa ser identificado como tal, com toda evidência, isto é, hão de ser, cuidadosamente evitados a precipitação e os preconceitos não ocupando o julgamento com nada que não se apresente tão clara e distintamente à razão que não haja lugar para nenhuma dúvida. A segunda regra propunha separar cada dificuldade a ser examinada em tantas partes quanto sejam possíveis e que sejam requeridas para solucioná-la. A terceira dizia respeito à condução do pensamento de forma ordenada, partindo do mais simples e fácil daí ascendendo, aos poucos, para o conhecimento do mais complexo, mesmo supondo uma ordem em que não houvesse precedência natural entre os objetos de conhecimento. A última regra se referia à necessidade de efetuar uma revisão exaustiva dos diversos componentes de um argumento de tal maneira que seja possível certificar-se de que nada foi omitido (Descartes, 1960). Uma preocupação adicional de Descartes residia na certeza a que ele podia chegar por meio de provas matemáticas. A Isaac Newton coube a criação de teorias matemáticas que confirmaram a visão cartesiana do corpo e do mundo como uma grande maquina a serem explorados. Assim como a mecânica newtoniana possibilitou a explicação de muitos fenômenos da vida cotidiana, a medicina mecanicista passa a fornecer, gradativamente, os instrumentos requeridos pelos médicos para que pudessem lidar de forma cada vez mais satisfatória,com uma parte crescente das doenças mais corriqueiras. Nao podem ser negados - tanto quanto seria descabido fazê-lo nos dias de hoje - os notáveis avanços ocorridos no campo das ciências biológicas, a partir do século XVII, à medida que também evoluíam a física e a química. O que, cabe, sim, continuar questionando são os descaminhos ou as estratégias e interesses que, em especial a partir da revolução industrial capitalista passaram a prevalescer e que mais adiante serão objeto de maiores considerações. Agora, o alvo do interesse médico passou da história da doença para uma descrição clínica dos achados propiciados pela patologia, isto é, como diz Bennet (1987), de uma abordagem biográfica para uma outra, nosográfica. Grande parte das descobertas da medicina moderna foram sendo, paulatinamente, validadas pela abordagem biomédica. Alguns exemplos, entre tantos, dessas descobertas podem ser realçados, tais como os estudos anatômicos de Vesalius (publicados em 1543), a descoberta da circulação sanguínea por William Harvey, em 1628 e da primeira vacina por Edward Jenner (1790-1823). Mais adiante, na década de 1860 e subsequentes, a era bacteriológica se instaura com a decisiva participação, com merecido destaque, entre outros, de Louis Pasteur e Robert Koch, o primeiro evidenciando o papel das bactérias, seja no processo de fermentação, seja nas
doenças, além de, entre outras contribuiçães, ter chegado às vacinas anti-rábica e contra o Anthrax e o segundo, tendo descoberto o agente etiológico da tuberculose e formulado os postulados que tipificam o rigor do raciocínio mecanicista e sua insistência na correlação causa-efeito: o microorganismo está presente e pode ser detectado em todo caso da doença; ele pode ser cultivado em meio de cultura apropriado; a inoculação desta cultura reproduz a doença em animal susceptível e o microorganismo pode ser recuperado, de novo, do animal infectado. A teoria microbiana passa a ter, já nos fins do século XIX uma predominância de tal ordem que, em boa medida, faz obscurecer concepções que destacavam a multicausalidade das doenças ou que proclamavam a decisiva participação, na eclosão das mesmas dos fatores de ordem socioeconómica. No campo da epidemiología, o trabalho precursor de John Snow abriu caminho
para a compreensão dos elos presentes na determinação das doenças pestilenciais ou epidêmicas e para a possibilidade de intervir sobre as mesmas. Obviamente, no que concerne à abrangência das doutrinas que tentavam compreender o processo saúde-doença, buscando entender a complexidade da sua determinação, já se chegara, no século XVIII, a enormes avanços. Veja-se a respeito os trabalhos de Rosen (1980; 1997), Sigerist (1961), Singer (1981), Foucault (1993), entre tantos outros. As descobertas mencionadas e tantas outras requeriam um modelo explicativo que pudesse incorporar as inovadoras concepções sobre a estrutura e funcionamento do corpo. Durante largo período de tempo, médicos e pacientes tiveram sua atenção voltada para o todo e a interação harmônica das partes. O novo modelo explicaivo introduz a gradativa reorientação nos princípios e práticas que irão conformar a nova medicina, sendo muiilustrativo o modelo mecânico que se erige como analogia para a compreensão do funcionamento do corpo: o relógio e suas engrenagens. Vale a pena, nesse contexto, realçar o fato de que, tanto quanto o próprio Descartes, tido como o pai do racionalismo na moderna filosofia, aos dentistas, de maneira geral, nos séculos XVI e XVII, nao parecia difícil ou incongruente conciliar a crença religiosa com suas observações empíricas. Contudo, o empirismo (na formulação de suas bases, não se pode esquecer a contribuição decisiva de Francis Bacon, o primeiro a formular os fundamentos do método indutivo) foi, aos poucos, tal como ressalta Bennet (1987), substituindo a especulação como fonte primordial da descoberta da verdade e dos segredos da natureza, o que pode ser observado com mais clareza, seja na astronomia, onde as antigas cosmologías, a despeito das reações eclesiásticas, deram lugar a novas teorias, seja na física, com Newton (teoria da gravitação universal, unificação das diversas explicações sobre a natureza e propagação da luz e
tantas outras importantes contribuições). Bennet (1987), em todo caso, chama a atenção para não se exagerar no grau de culpabilidade imputado a Descartes e Newton pelos críticos da medicina mecanicista contemporânea. Para Bennet, suas concepções estariam bem distantes daquelas dos iatromecanicistas de hoje, cujo precursor máximo seria Julien Off ray de la Mettrie (1709-1751) para quem mesmo as doenças mentais teriam uma origem física, a propósito, uma perspectiva de todo coerente com muito do que se partica e investiga na psiquiatria contemporânea (uma apreciação crítica das doutrinas, sobretudo relacionadas às terapêuticas que elas propugnam, de escolas médicas dominantes na Europa e no Brasil nos dois últimos séculos, foi feita por Sayd (1999). Se quisermos ilustrar ainda mais - e com exemplos mais ou menos recentes - o raciocínio mecanicista, podemos tomar o caso do diabetes. Em 1889, se descobre que a alteração metabólica, essência dessa enfermidade, podia ser reproduzida removendo-se o páncreas, em 1921 detectando-se que a administração de insulina aliviava os sintomas. Estava-se diante de mais um clara demonstração de como uma deficiência na "máquina" provocava doença que podia ser "curada" através do emprego de uma substância específica. Texto retirado do artigo: PENSANDO O PROCESSO SAÚDE DOENÇA: A QUE RESPONDE O MODELO BIOMÉDICO?
Autor: José Augusto C.Barros, Professor da Faculdade de Medicina da Universidade Federal do Pernambuco

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